Papa Francisco, o líder da Igreja Católica que faleceu em 21 de abril de 2025, aos 88 anos, deixou um legado que vai muito além das fronteiras do catolicismo. Sua morte, causada por um acidente vascular cerebral seguido de coma e colapso cardiovascular irreversível, provocou uma onda de comoção global que uniu pessoas de diferentes credos em um luto compartilhado, demonstrando como sua mensagem de amor, paz e inclusão tocou corações ao redor do mundo.
O primeiro papa latino-americano da história, nascido Jorge Mario Bergoglio em Buenos Aires, Argentina, transformou o papado com sua simplicidade, humildade e compromisso inabalável com os mais vulneráveis. Sua jornada, desde as ruas de Buenos Aires até o Vaticano, foi marcada por uma profunda vocação de serviço que redefiniu o papel da Igreja Católica no século XXI e construiu pontes entre religiões historicamente distantes.
Papa Francisco: uma vida dedicada à fé
Papa Francisco nasceu em 17 de dezembro de 1936, no bairro de Flores, em Buenos Aires, filho de imigrantes italianos. Mario José Bergoglio, seu pai, era ferroviário, e sua mãe, Regina Maria Sivoni, dona de casa. Desde cedo, recebeu forte influência católica, especialmente de sua avó paterna, presença constante em sua infância.
Sua juventude foi como a de muitos argentinos: frequentava festas, convivia com amigos e torcia apaixonadamente pelo time de futebol San Lorenzo. Após concluir sua formação como técnico em química em 1957, sentiu o chamado para a vida religiosa. Em sua autobiografia “Vida – Minha História Através da História”, lançada em 2024, Francisco relata o momento decisivo de sua vocação, quando aos 17 anos, ao passar pela Basílica de Flores, sentiu “algo estranho acontecer” durante uma confissão.
“Eu estava maravilhado por ter encontrado Deus subitamente. Ele estava lá me esperando, antecipou-se a mim”, descreveu em suas memórias. “Mais do que um piquenique com os amigos! Eu estava vivendo o momento mais bonito da minha vida, estava me entregando totalmente nas mãos de Deus!”
Sua jornada religiosa, porém, enfrentou desafios. Ainda no seminário, uma grave infecção pulmonar quase tirou sua vida. “Um dia eu piorei: minha temperatura corporal estava altíssima, e o reitor, assustado, levou-me correndo ao Hospital Sírio-Libanês”, relatou. Como resultado da pleurisia, Bergoglio teve que remover o lobo superior do pulmão direito, uma cirurgia dolorosa que marcou sua vida.
Em 1958, ingressou no noviciado da Companhia de Jesus, tornando-se jesuíta. Formou-se em Filosofia e Teologia, foi ordenado sacerdote em 13 de dezembro de 1969 e dedicou-se ao ensino e à formação de novos religiosos. Entre 1973 e 1979, assumiu a liderança dos jesuítas na Argentina, durante o período sombrio da ditadura militar.
Sua ascensão na hierarquia católica continuou: foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires em 1992, arcebispo em 1998 e cardeal em 2001, pelo Papa João Paulo II. Durante esse período, ficou conhecido por seu estilo de vida simples e sua proximidade com os mais pobres. Ao invés de morar no palácio episcopal, preferia uma residência modesta e utilizava transporte público, antecipando o que seria uma marca de seu futuro pontificado.

Um pontificado revolucionário
A eleição de Jorge Mario Bergoglio como Papa, em 13 de março de 2013, após a histórica renúncia de Bento XVI, representou um momento de profunda transformação para a Igreja Católica. Ao escolher o nome Francisco, em homenagem a São Francisco de Assis, sinalizou imediatamente sua intenção de liderar uma Igreja mais humilde, próxima dos pobres e comprometida com a paz.
Papa Francisco quebrou protocolos desde o primeiro momento. Antes mesmo de conceder a tradicional bênção Urbi et Orbi em sua primeira aparição na varanda da Basílica de São Pedro, pediu que os fiéis rezassem por ele, um gesto que simbolizou sua profunda humildade. Sua decisão de residir na Casa Santa Marta, em vez dos luxuosos aposentos pontifícios no Palácio Apostólico, reforçou ainda mais seu compromisso com a simplicidade evangélica.
Durante seus 12 anos de pontificado, Papa Francisco colocou a misericórdia no centro de sua mensagem. Em 2015, proclamou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, enfatizando que “ninguém pode ser excluído da misericórdia de Deus” e que a Igreja deve ser “a casa que acolhe todos e não rejeita ninguém”.
Sua preocupação com os marginalizados foi constante. Criticou duramente a “cultura do descarte” que afeta os mais vulneráveis e defendeu incansavelmente os direitos dos imigrantes e refugiados. Sua primeira viagem ao exterior como pontífice foi significativamente para Lampedusa, ilha italiana que recebe milhares de refugiados, onde denunciou a “globalização da indiferença”.
Em sua encíclica “Fratelli Tutti”, abordou a fraternidade e a amizade social, conclamando a humanidade a “construir pontes em vez de muros” – frase que se tornou emblemática de seu pontificado e que foi especialmente mencionada durante seu funeral. Essa mensagem ganhou ainda mais força em um mundo marcado por divisões políticas e religiosas.
Papa Francisco também foi um defensor incansável do meio ambiente. Em sua encíclica “Laudato Si’”, alertou sobre os perigos das mudanças climáticas e convocou a uma “conversão ecológica global”. Sua abordagem integrou preocupações ambientais e sociais, enfatizando que “não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma única e complexa crise socioambiental”.
Internamente, promoveu reformas significativas na Igreja, incluindo a reestruturação da Cúria Romana e medidas para maior transparência nas finanças do Vaticano. Enfrentou com coragem escândalos de abuso sexual, implementando políticas mais rigorosas para proteger os vulneráveis e responsabilizar os culpados.
Um líder que transcendeu fronteiras religiosas
O impacto do Papa Francisco foi sentido muito além do catolicismo. Sua morte provocou uma onda de manifestações de pesar de líderes religiosos de diversas tradições, demonstrando como seu trabalho pelo diálogo inter-religioso construiu pontes duradouras.
A Confederação Israelita do Brasil (Conib) afirmou que a morte do líder católico foi uma “grande perda para a humanidade”. Em nota, destacou: “O papa Francisco, com seu carisma e visão inclusiva, tocou o coração das pessoas em seu papado transformador. Ele visitou o campo de extermínio nazista de Auschwitz, condenou o antissemitismo, o discurso de ódio e o racismo, além de promover o diálogo inter-religioso. Que seu legado continue a nos guiar na busca por um mundo mais humano, justo e pacífico.”
A Federação Israelita do Estado de São Paulo expressou que “o papa Francisco foi mais do que um pontífice – foi uma consciência global, uma presença ética e espiritual que jamais se calou diante do antissemitismo, do racismo e de todas as formas de intolerância. Sua firme defesa do diálogo inter-religioso e da fraternidade entre os povos deixa um legado que transcende fronteiras e credos”.
Do mundo islâmico, vieram manifestações igualmente emocionadas. O Centro de Divulgação do Islam Para América Latina (CDIAL) ressaltou que “desde sua eleição em 2013, destacou-se por seu compromisso com os mais pobres, sua incansável defesa dos direitos humanos e sua dedicação ao diálogo inter-religioso e à promoção da paz mundial”. O sheik Jihad Hammadeh, líder muçulmano brasileiro, afirmou que o Papa Francisco “se posicionou de forma firme” em questões humanitárias globais.
A Federação Espírita Brasileira descreveu o pontífice como um “dedicado irmão na doutrina cristã que aproximou fiéis católicos e de outras denominações religiosas pelo exemplo de amor, humildade e fraternidade”. Destacou ainda que ele “trabalhou o debate inter-religioso, assim como a humildade e a indulgência para com todos, independente da crença”.
Das religiões de matriz africana, vieram homenagens profundamente emocionadas. O babalaô Ivanir dos Santos, sacerdote do Candomblé, disse que integrantes de outras tradições religiosas enxergavam no pontífice um “símbolo de respeito, escuta e abertura”. Em suas palavras: “Papa Francisco nos inspirou pelo gesto e pelo exemplo, ultrapassando fronteiras da fé. Sua partida deixa saudade, mas também um chamado à continuidade do que ele acreditava: o respeito à diversidade e o compromisso com a dignidade de todos”.
A Mãe Meninazinha de Oxum, Iyalorixá do Ilê Omolu Oxum, afirmou que o Papa “será lembrado e celebrado pela sua atuação voltada para o enfrentamento às injustiças e todas as formas de preconceitos. Ele era uma verdadeira luz para o mundo”. Já a Mãe Nilce de Iansã, coordenadora nacional da Renafro, escreveu que “quando fechamos os olhos e pensamos no papa Francisco, imediatamente nos vem a imagem de seu sorriso, reflexo de toda a sua jornada de acolhimento e respeito a todas as pessoas, independentemente de religião. Ele semeou o seu amor por onde passou e certamente a força de seu trabalho germinará para as gerações futuras”.
A Frente de Evangélicos também prestou homenagem, reconhecendo que “o primeiro papa latino-americano marcou seu pontificado numa trajetória de simplicidade e defesa aos direitos humanos” e que “reconhecemos em sua liderança os ensinos de Jesus de solidariedade, paz, amor e igualdade”.
O apóstolo Estevam Hernandes, líder da igreja evangélica Renascer em Cristo, disse que “independentemente de crença ou denominação”, reconhece que o Papa Francisco “foi um grande homem de Deus”.
Essas manifestações de diferentes tradições religiosas demonstram como o Papa Francisco conseguiu, através de seu exemplo e de suas ações, construir pontes de diálogo e respeito mútuo, deixando um legado que transcende as fronteiras do catolicismo.
O adeus ao pontífice que construía pontes
O funeral do Papa Francisco, realizado em 26 de abril de 2025, reuniu cerca de 400 mil pessoas na Praça de São Pedro, no Vaticano. Entre os presentes estavam fiéis católicos, membros do clero, chefes de Estado e representantes de diversas religiões, em uma demonstração da amplitude do impacto de seu pontificado.
A cerimônia foi conduzida pelo cardeal Giovanni Battista Re, decano do Colégio Cardinalício, que em sua homilia destacou: “As demonstrações de afeto que testemunhamos nos últimos dias após sua passagem desta terra para a eternidade nos dizem quanto o pontificado do papa Francisco tocou mentes e corações”. O cardeal também enfatizou o compromisso do pontífice com a paz, lembrando sua famosa frase: “construir pontes, não muros”.
Entre os líderes mundiais presentes estavam o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente argentino Javier Milei, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, o presidente da França Emmanuel Macron, entre outros. A presença de tantas autoridades, algumas com posições políticas diametralmente opostas, simbolizou a capacidade do Papa Francisco de promover o diálogo mesmo entre adversários políticos.
Seguindo seus próprios desejos, expressos antes de sua morte, o Papa Francisco foi sepultado na Basílica de Santa Maria Maggiore, tornando-se o primeiro pontífice desde Leão 13, falecido em 1903, a ser sepultado fora do Vaticano. Sua sepultura, localizada entre a Capela Paulina e a Capela Sforza, próxima ao Altar de São Francisco, é marcada pela simplicidade que caracterizou sua vida: feita de mármore da Ligúria, tem apenas a inscrição “Francisco” e a reprodução de sua cruz peitoral.
O caixão simples de madeira, escolhido pelo próprio pontífice em contraste com os tradicionais caixões triplos de seus antecessores, foi levado em procissão da Praça de São Pedro até a Basílica de Santa Maria Maggiore em um papamóvel adaptado. Durante o trajeto de seis quilômetros, que passou por locais simbólicos de Roma, milhares de fiéis e turistas aplaudiram em uma última homenagem ao “papa dos pobres”.
O sepultamento foi um evento privado, permitindo que as pessoas mais próximas ao pontífice prestassem suas últimas homenagens. A cerimônia, presidida pelo cardeal camerlengo Kevin Farrell, durou 30 minutos e contou com a presença de familiares do argentino.

Um legado eterno de amor e união
Papa Francisco deixa um legado que transcende sua própria vida e a instituição que liderou. Suas palavras e ações continuarão a inspirar pessoas de todas as crenças a construir um mundo mais justo, fraterno e compassivo.
Como ele mesmo disse certa vez: “O verdadeiro poder de uma liderança religiosa vem de seu serviço. Quando deixa de servir, o religioso se transforma em um mero gestor.” Esta frase resume perfeitamente sua visão de liderança baseada no serviço e na humildade, valores que praticou consistentemente ao longo de sua vida.
Sua abordagem inclusiva e respeitosa em relação à diversidade humana foi sintetizada em outra de suas frases memoráveis: “Gosto quando se fala de pessoa homossexual. A pessoa vem primeiro, em sua integridade e dignidade. Somos todos, criaturas amadas por Deus.” Esta perspectiva centrada na dignidade humana foi fundamental para aproximar pessoas que se sentiam marginalizadas ou excluídas.
O Papa Francisco nos ensinou que a fé autêntica não é algo distante ou abstrato, mas uma experiência viva e pessoal: “Ao homem eu digo que não conheça a Deus de ouvidos. O Deus vivo é aquele que se vê com seus olhos, dentro de seu coração.” Esta visão de uma espiritualidade encarnada e concreta tocou pessoas de todas as tradições religiosas.
Mas talvez seu maior legado seja a mensagem de que devemos “construir pontes, não muros” – um chamado à união em um mundo cada vez mais dividido. Esta frase, repetida em momentos cruciais de seu pontificado, resume sua visão de uma humanidade interconectada, onde as diferenças não são barreiras, mas oportunidades para o enriquecimento mútuo.
O fato de sua morte ter provocado manifestações de pesar tão sinceras e emocionadas de líderes de diversas religiões é o testemunho mais eloquente de como Papa Francisco conseguiu, através de seu exemplo e de suas ações, transcender as fronteiras do catolicismo e tocar corações ao redor do mundo.
Seu sorriso acolhedor, sua simplicidade desarmante e sua coragem inabalável em defender os mais vulneráveis permanecerão como um farol de esperança e inspiração para todos aqueles que acreditam que um mundo mais justo, fraterno e compassivo é possível. Como disse a Mãe Nilce de Iansã: “Ele semeou o seu amor por onde passou e certamente a força de seu trabalho germinará para as gerações futuras.”
Papa Francisco não foi apenas um líder religioso; foi uma consciência moral para nosso tempo, um construtor de pontes entre diferentes tradições e um defensor incansável da dignidade humana. Seu legado de amor, paz e inclusão continuará a iluminar o caminho para um futuro onde as diferenças não nos dividem, mas nos enriquecem.